Creio que não sou propriamente uma atração de feira enquanto como, mas por vezes recebo um estranho elogio: “Gosto de te ver comer”. Tenho alguma dificuldade em conseguir compreender o deslumbre, mas aparentemente existem pessoas que valorizam a concentração e o foco com que me empenho, raramente desviando o olhar do prato. Seja uma simples tosta mista ou uma perfumada lampreia à bordalesa, quando como, faço-o com entusiasmo. Talvez o mesmo entusiasmo que emprego ao falar ou escrever sobre comida. Em jeito de exemplo, o texto que se segue podia resumir-se a: “hoje o almoço foi carne de vaca guisada em vinho tinto, comemos e todos gostaram, mais ou menos”, depois punha uma foto do prato picada da net e toma lá foodporn! Mas comigo, a foodporn só funciona devidamente contextualizada. Preciso de saber o nome do canalizador e quando se deu a inundação na casa da pequena. É o contexto que nos levanta o espírito.
Tudo começou na quinta-feira, enquanto refletia compenetradamente sobre a escolha do prato que viria a ser o ponto alto do fim de semana. Foi um momento de elevação em que fui passando em revista as possibilidades, ao mesmo tempo que imaginava como seria a torrente de glória com que a minha família me banharia, quando se desse a ansiada degustação. Cheguei a imaginar-me como um César, envergando uma coroa de louros, de pé na minha quadriga, recebendo o júbilo da multidão no meu Triunfo Romano, com Vénus a piscar-me o olho enquanto exibia o ebúrneo tornozelo adornado pelas fitas da sandália.
Voltando a mim, a escolha acabou por recair num Boeuf Bourguignon para o almoço de Domingo (só para armar ao pingarelho). Como é comum nestas ocasiões e dado que tiro um grato prazer de todos os momentos ligados à gastronomia desde a confeção até à aprovação, antecipei mentalmente os ingredientes necessários e respetivo percurso aquisitivo. “A carne de touro tem de ser encomendada no talho lá de baixo. Convém insistir na importância do equilíbrio entre tecido conjuntivo e adiposo e não esquecer de pedir os ossos para o caldo. As cebolas pérola só se encontram no Corte Inglés mas é de aproveitar e comprar logo o vinho da cozedura e o que acompanha a refeição também (a garrafeira deles é menos má). Os cogumelos frescos e as cenouras têm de ser da mercearia (são os melhores). O bacon tem de ser do outro talho ao fundo da rua (é o mais parecido com o inglês)…” Os ingredientes vão desfilando na minha mente, devagarinho, mostrando-se no seu melhor e exibindo toda a pujança da sua farta saúde, qual Soraia Chaves insinuando-se a um incauto Breyner, enquanto o educava sobre a essência da sua atividade.
Porque cá em casa se dividem tarefas e também porque não tenho pretensões a ser o único a brilhar, entrego o privilégio da aquisição à minha Syrinx que, com o seu particular discernimento dessa atividade, logra o milagre de me fazer chegar tudo por cerca de metade do preço que eu, num momento de fraqueza, cheguei a estimar. Fica subentendido que a minha Dulcineia é indiferente à psicose gastronómica do marido e claro que o bacon não é de onde eu pedi, o vinho não é o que escolhi, a carne é vulgar para guisar mas, alegria, pelo menos os cogumelos são frescos e da mercearia. “Se não gostas, vais tu discutir com o Sr. Paulo o equilíbrio ideal do tecido conjuntivo e do raio que parta isto tudo! E ainda tive de ir ao Pingo Doce por causa do tomilho!”. Ainda em choque com tamanha insensibilidade, de olhos esbugalhados e os poucos cabelos em pé, opto por ir pôr a carne a marinar em vinho tinto, pois não pertence confrontar a fera nestas ocasiões.
Na manhã seguinte, continuo a seguir a receita que encontrei num site. Isto claro, penitenciando-me por não ter recorrido à minha musa gastronómica (a doce Neuza do canal de Youtube “Sabor Intenso”), mas a verdade é que não a imagino (nem o quero fazer) a prestar-se a francesices. Quatro horas depois, guisado pronto, a pesada panela de ferro sai do forno apenas para repousar em paz em cima do fogão, até ao dia seguinte (creio que é do senso comum que os guisados são invariavelmente melhores passado um dia, altura em que os sabores já tiveram tempo de se conhecer e procriar).
Há um tom quase profético neste prato: no primeiro dia marinarás, no segundo confecionarás e só no terceiro desfrutarás do seu sabor. A antecipação do momento em que me banquetearei romanamente em cubos de carne mergulhados naquele apurado molho espesso, causa em mim repuchos de saliva!
O culminar desta viagem deu-se hoje ao almoço. Que bela altura para se estar vivo! Finalmente chegou o ansiado momento! Quase chorei quando acendi o lume por baixo da panela para aquecer a refeição! Tristemente, os meus comensais não corresponderam. Os miúdos comeram com gosto (enjeitando os vegetais), mas indiferentes à penosa jornada do pai para ali chegar e a minha Dinamene, observando-me de sorriso escondido, enquanto comia os cogumelos e as cenouras, parecia pensar “coitado…”.
Contemplando incrédulo o panorama em meu entorno, parece-me que ainda consegui ver, lá ao longe, Vénus com a coroa de louros posta ao contrário e vestes esvoaçantes, afastando-se submersa em ruidosas gargalhadas, de pé na quadriga que um dia sonhei ser-me destinada, chicoteando impiedosamente as pobres alimárias enquanto me dirigia um gesto pouco próprio!
Em jeito de epítome, “hoje o almoço foi carne de vaca guisada em vinho tinto, comemos e todos gostaram, mais ou menos”.
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