Em virtude das obras do metropolitano, que passam perto do sítio onde ganho o pão, tenho hoje em dia um diligente Polícia a orientar o trânsito. O Sr. Agente está ali para garantir que peões e viaturas convivem em celestial harmonia, dada a ausência “temporária” de semáforos. Na minha imaginação tudo poderia passar-se na maior serenidade, tendo o nosso Agente um comportamento próximo do de um praticante de tai chi chuan, canalizando fluxos de trânsito compenetrada e teatralmente, como se de energia se tratasse. Mas não. Não acontece assim.
É que o Sr. Agente apita. Apita para mandar avançar, apita para mandar parar, apita para insistir, apita para respirar, apita para chamar a atenção, apita para se afirmar, apita para virar, apita porque existe e já que existe logo apita. Muito apita aquele apito! O energúmeno apita a seu bel-prazer porque apitar lhe está na massa do sangue. O som do apito é para ele um canto de ave canora. Trata-se de um tipo que apita, discute e ensina o ato de apitar. Um verdadeiro mestre na arte de tanger o apito. De tal forma é compulsivo que desconfio que, ao fim de semana, se entrega ao nobre ofício de árbitro, de maneira a poder dar largas à sua arte, também nos seus momentos de lazer. Assim, quando trabalha apita e quando descansa… continua a apitar.
Ao longo do tempo em que tenho estado sujeito a esta violência sonora, a qual tem sido masoquisticamente adornada pela antecipação mental dos anos que vou ter de tolerar este torpe ataque à minha paciência, confesso ter tido pensamentos pouco cristãos em relação ao camarada Agente. Partilho convosco algumas ideias que me fizeram pensar na possível utilização de um silício em busca de redenção:
1- Pô-lo num estúdio de som, fechado, durante uma semana, a ouvir o apito dia e noite, com uma cadência regular (ou não).
2- Transformá-lo no pequeno berlinde que se encontra dentro seu próprio apito, para que fosse violentamente centrifugado a cada apitadela. Mas não qualquer tipo de apitadela, tinha de ser daquelas que ele usa para reafirmar a sua ofendida autoridade, quando algum condutor mais afoito não trava obedientemente no mesmo segundo em que lhe é dado o sinal de paragem.
3- Levá-lo para o deserto, com água mas sem apito, sem peões nem carros. Nem nada. Para que tivesse a grata (e calculo que no seu caso, rara) oportunidade de experimentar o silêncio e aprender com isso.
4- Materializá-lo no meio de um movimentado cruzamento em Marraquexe, de onde não conseguisse sair, obrigado a presenciar todo o tipo de vis e primárias transgressões mas privado do seu apito. As crianças passariam por ele, nos carros dos seus pais e zombariam impunemente do desgraçado, fazendo-lhe caretas, dado que sem apito, era apenas um tipo num cruzamento.
5- Enviá-lo para o Rio de Janeiro durante o Carnaval, orfão de apito, condenando-o a ouvir os apitos dos outros, sem se poder defender.
6- Destacá-lo para o Porto, em noite de São João, de alho porro em punho, mas de apito atado à presilha das calças através de uma corrente curta, de forma a que fosse obrigado a curvar-se para tentar apitar, sem no entanto o conseguir, e desse cabo das costas no processo.
7- Havia outra, mas continha um orifício que o pudor me impede de descrever.
Passadas algumas semanas, já com o espírito mais conformado devido à sensação de inevitabilidade, lá reconheci que o dedicado Agente está apenas desempenhando a sua função, para que todos possamos conviver em segurança. O preço a pagar por isso (para além dos sacrossantos impostos) é sacrificar os nervos de uns quantos de nós, que temos o privilégio de trabalhar sob os auspícios do seu apito. Na verdade, se é isto que tenho de sofrer em prol do progresso e da harmonia social, então, irmão Agente, não te poupes a apitar! Sopra até que te rebente essa veia proeminente que trazes no frontispício! Até que os olhos te saltem das órbitas! Até que o cerúmen abandone os teus ouvidos!
Este incómodo que me apoquenta é sintoma das janelas que a vida me vai abrindo, na tentativa de me ir dando delicados vislumbres (ainda que ao longe), do seu período dourado. Irrita-me o apito do polícia, incomoda-me o barulho das obras dos vizinhos, amofina-me o som das bilhas de gás arrastadas no chão da mercearia em baixo de casa, perturbam-me os carros que passam testando o volume das suas aparelhagens sonoras, arreliam-me as motos que aceleram “em seco” para se fazerem anunciar, enfim, aborrecem-me boa parte dos atentados ao meu conforto silencioso, redondo e burguês: If the whistle is too loud, you’re too old!
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